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Tempo Rei, impermanência e eternidade: a arte de Gilberto Gil e os cuidados paliativos

Clínica Florence
Cuidados Paliativos
Gilberto Gil
Ponto de Vista
Tempo Rei
Turnê

Por João Ramos, médico paliativista e diretor médico da Clínica Florence

Tempo Rei e Cuidados Paliativos
Turnê Tempo Rei de Gilberto Gil celebra a vida e reflete sobre a impermanência com música, afeto e legado. (Foto: Divulgação)

Na turnê Tempo Rei, Gilberto Gil transforma o palco em rito e celebração: um tributo à vida, mas também à sua impermanência.

Ao lado dos filhos e netos, revisita sua trajetória como quem atravessa, com serenidade, a linha do tempo — do menino de Ituaçu ao mestre tropicalista, do ministro da cultura ao patriarca musical. Essa caminhada se assemelha à experiência dos cuidados paliativos, que reconhece o fim da vida não como derrota, mas como parte do próprio viver — e propõe que, mesmo diante da morte, há espaço para afeto, sentido e beleza.

O show é apoteótico. Gil, no alto dos seus 82 anos promove uma festa intensa do início ao fim, dos momentos mais introspectivos aos mais agitados, sempre acompanhado do coro intenso da plateia e sendo reverenciado por participações especiais.

A saúde, o tempo e a filosofia dos cuidados paliativos

Essa vitalidade é ainda mais impressionante quando nos lembramos que isso acontece alguns anos após Gilberto Gil ter passado por uma grave situação de saúde, quando apareceu seriamente debilitado, tendo chegado a pensar em suspender os tratamentos, conforme relatado na série documental “em casa com os Gil”. Esse também é um ponto de encontro com a temática dos Cuidados Paliativos, em que não se busca a suspensão de terapias, mas se procura entender os tratamentos mais apropriados em cada fase da doença, de acordo com os valores e desejos da pessoa.

Na turnê atual, Gil é potência e eternidade: na tropicália, no forró, no reggae, no rock, samba, bossa-nova e na mistura de todos esses ritmos. A passagem dos ritmos e álbuns evidenciam a enormidade da sua obra, mas também marcam a passagem do tempo, sempre ilustrado pelas mensagens do artista. Desde o início em que, ainda criança, afirmava: “mãe, quero ser musgueiro”, passando pela experimentação inicial, o exílio, as viagens mundo afora e Brasil adentro e suas experiências pessoais: os amores e as perdas.

O amor, a morte e o sentido da existência nas canções

Gil declara: “o amor é mais difícil do que a morte”, porque quando a morte há, já não há mais nada. “Não tenho medo da morte, mas sim medo de morrer” não estava no setlist, mas se fez presente. Outros clássicos estavam lá, como em Refazenda, onde já aparece a sabedoria de quem vê a vida como ciclo, feito de podas e renascimentos.

Em Domingo no Parque, ele relembra a juventude e a força do destino; em Cálice, evoca dores coletivas, silenciamentos e lutos. Mas é em outro momento do show que sua reflexão se torna íntima, tocando a todos, em canções como Drão — “Se o amor é como um grão / Morre nasce trigo / Vive morre pão” —, Esotérico – “Até que nem tanto esotérico assim / Se eu sou algo incompreensível, meu Deus é mais / Mistério sempre há de pintar por aí”- , Estrela – “Hum! / Deus fará absurdos / contanto que a vida / seja assim” -, e que Se eu quiser falar com Deus, “Tenho que dizer adeus / dar as costas, caminhar / decidido, pela estrada / que ao findar vai dar em nada (…)/ do que eu pensava encontrar”.

Turnê como ritual de encerramento e reflexão sobre o luto

Em Tempo Rei, canção tema de sua última turnê, ele canta: “Não me iludo, tudo permanecerá de um jeito / que tem sido, transcorrendo, transformando / tempo e espaço navegando / todos os sentidos” e continua, evocando o Tempo-rei, “transformai as velhas formas do viver”, num pedido para que a passagem do tempo não seja temida, mas acolhida com coragem. E inicia o encerramento do show com Aquele Abraço, despedindo-se em festa — como se sugerisse que a eternidade mora, mesmo, no afeto vivido plenamente.

Essa turnê marca o encerramento de um ciclo e há nela um adeus implícito, com a marca de um luto. Ao compartilhar memórias pessoais, incluindo a perda de seu filho mais velho, Gil convida o público a refletir sobre a impermanência da vida. Assim como nos cuidados paliativos, onde se valoriza a qualidade de vida diante da morte inevitável, o show enfatiza a importância de viver com propósito e autenticidade. Afinal, “o melhor lugar do mundo / é aqui e agora”.